4º Passo

04-05-2010 20:16

4º Passo - Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos.

 

A culpa é como um manto de vergonha que o adicto carrega sobre os seus ombros e que tenta esquecer através da sua adicção.

A culpa é uma espécie de veneno que é ao mesmo tempo resultado e causa, num ciclo que se auto-perpetua na vida do adicto a seja o que for.

Não existem adições sem sentimento de culpa. O excesso de algo implica sempre a falta de outra coisa.

 

O inventário moral é uma espécie de lista, que na realidade é mais uma forma diferente de olhar. Um olhar que procura ver para lá das desculpas esfarrapadas, das meias verdades, das manipulações que se destinam a poder continuar tudo igual. Mas também um novo olhar que não vai observar tudo pelo filtro da auto-culpabilização cruel.

No 4º passo compreendemos que nada é pior do que sentir culpa e que precisamos de encontrar todas as fonte de culpa, todas as fontes de ressentimentos, todas as fontes de coisas mal resolvidas, todas as fontes de um sentimento horrível de falha.

Encontrar essas fontes é fundamental e é difícil. Este é um exercício de sinceridade, mas mais ainda de objectividade porque como veremos a nossa cabeça começa logo a contar histórias para justificar e para moldar a realidade à forma da nossa conveniencia, a fim de fugir do sentimento de culpa. Para que esta não nos mine pela sombra daquilo que, porque não encaramos, cresce: os nossos medos e angústias.

 

A complexidade não pode impedir-nos de fazer uma análise corajosa daquilo que temos sido, daquilo que temos representado, daquilo que simbolizamos. Uma análise corajosa daquilo que fizemos e de tudo o que deixámos de fazer pelos outros e por nós mesmos.

 Aqui não se trata de auto-flagelação. Pelo contrário. Quantas mais fontes de culpa encontrarmos, mais nos poderemos livrar dessa dor tão dentro, dessa sombra tão omnipresente, contaminando até o que devia ser bom, até o que devia ser simples.

Auto-flagelo sería fazermos um inventário moral de todos os nossos erros, falhas e manipulações apenas para nos apercebermos do quanto podemos odiar-nos ainda mais, o que culminaria, provavelmente, no aumentar da vontade adicta. Culpa e vergonha já são dois fardos que acompanham o adicto a tempo inteiro. O objectivo não é aumentar isso, mas sim, clarificar o que de qualquer forma já sucedia de forma torcida e enviezada.

 

Podemos pedir ajuda, nenhum passo tem de ser feito sozinho. A análise é individual, mas no grupo de 12 passos que frequentarmos outros fizeram já o 4º passo e conhecem as armadilhas, os truques e a forma de tirar todo o partido deste passo. Na realidade é difícil fazer os 4º e 5º passos em separado. Em circuito fechado é mais difícil fazer este trabalho do que ventilando com outros num contexto de compreensão, identificação e aceitação incondicional.

 

Respirar fundo, aceitar ver objectivamente, aceitar a culpa que for necessária para podermos finalmente cuidar dela sem fugir, sem adiar e acumular.

Coragem e objectividade são as duas ferramentas do 4º passo. Não um auto-flagelo, mas uma inventariação corajosamente objectiva.

E de onde vem essa coragem?

Da certeza de que em 12 passos e em recuperação nada se destina a fustigar-nos e a fazer-nos mal. Os princípio de aceitação e identificação irão mostrar-nos o quanto os nossos monstros são partilhados, o quanto a nossa sombra é afinal reconhecida por outros tão iguais em tanta coisa e, nessa aceitação, partilha e identificação, pode nascer um novo respeito próprio, feito de irmandade.

Esse sentimento de irmandade faz do grupo uma força poderosa cujo impacto em recuperação não se deve subestimar.

4º e 5º passos, em conjunto, irão mostrar-nos isso mesmo.

 

Em recuperação aprendemos que não somos o nosso passado. Não somos o que fizemos ou deixámos de fazer.

Hoje somos quem somos hoje. E hoje somos recuperação.

E nesse hoje, não temos de repetir aquilo de que não nos orgulhamos, apenas temos de ser o olhar de quem olha no espelho e vê com esperança e verdade um caminho que hoje é de recuperação. A maior prova de coragem das nossas vidas inteiras, é este minuto. Agora.