A estranha reviravolta

08-05-2013 21:46

Um dos primeiros sinais de que o adicto começou a vir à tona, é olhar para os que antes pareciam saudáveis; e começar a ficar tudo muito confuso.

Todos os que estavam a "ajudar" o adicto; a "aturar" o adicto, ou a "tolerar" (o verbo varia muito consoante a natureza da adicção, se é socialmente aceite ou não, por exemplo). Todos os que estavam a fazer tudo isso pelo adicto, ficam baralhados, quando o adicto começa a ter um comportamento diferente.

Há um periodo muito difícil, no qual o adicto pode sentir-se finalmente doente, porque deixou de estar em negação. É quando percebe o quão mal está e o quanto precisa de ajuda. E ao mesmo tempo, percebe a confusão e o desequilíbrio que se instalou ou que sempre existiu; naqueles que agora vão ter uma reacção supreendente.

Quem "ajudou" o adicto, dificilmente consegue "ajudar" aquele que sai dessa dinâmica, precisamente por isso. Por fazerem ambos parte da dinâmica na qual tanta loucura foi possível.

É fácil acontecer ao adicto em recuperação, ir encontrando nos seus antigos "ajudadores", outros tão doentes quanto ele mesmo. Ou mais. Ou menos. Mas longe de serem as pessoas equilibradas que sabem reconhecer traços de saúde quando os vêem.

Os co-dependentes são espantosos. Lamentam, sofrem, envolvem-se; fazem o que não lembra ao diabo. Vigiam, punem, salvam, mentem pelo adicto, inventam histórias, manipulam... deixam-se levar ao inferno; pelo adicto. Mas dificilmente farão o mesmo pelo adicto em recuperação.

É estranho. Ilógico. E é por isso que se chama co-dependência e é um quadro clínico.

Mães, irmãs, irmãos, namoradas e namorados, maridos e mulheres, filhos e filhas; mas também profissionais e voluntários como enfermeiros, bombeiros, terapeutas, psico-terapeutas... É um exército imenso de pessoas cuja principal fonte de poder é o sentimento de que podem ajudar o inajudável. Fazer o impossível. Entregar a alma ao salvamento da alma dos outros. Até ao dia em que se perguntam a quem terão entregue a alma e onde está ela agora.

Um vazio tão grande apodera-se dos seus dias. É fácil ficar deprimido, ou zangado, ou vazio, ou resmungão, ou amargo. Tudo menos forte, equilibrado e feliz.

É uma bola de neve de coisas que começam a tornar-se possíveis, filmes malucos, vidas descontroladas, acontecimentos. As horas, os dias, o nível de entrega. São muitas as formas de exteriorização do desequilíbrio.

É como a pessoa que decide dar ao outro aquilo que não é seu para dar.

Abdicar de dormir, abdicar de uma relação afectiva compensatória, abdicar da felicidade, abdicar da dignidade. Abdicar da companhia, abdicar do apoio, da saúde. Abdicar de dialogar, de crescer, de receber um pouco de gratidão que seja.

Há coisas das quais, quando abdicamos, deixámos de ter saúde suficiente para poder continuar a ajudar. Só por isso. Só por ter abdicado disso.

Quem quer ajudar, tem de saber estar ali para o adicto, mas manter o centro, manter o norte, manter a noção do limite do respeito (próprio e pelo outro).

Quem quer ajudar, tem de saber, informar-se junto de quem sabe. Quem quer ajudar precisa de parar de insistir nas suas histórias lamechas. E procurar informação objectiva, dados fundamentados, procurar a experiência de quem passou por esse pântano e saíu. Não de quem ainda está lá.

 

Para que o co-dependente possa continuar a ser co-dependente vai precisar de algumas coisas: Pessoas iguais por perto, vítimas por perto, e quem valorize o seu martírio por perto. Sofrer por amor parece certo. Parece que uma coisa faz parte da outra. 

E depois, se as vítimas inventarem de não precisar mais dos seus gestos salvadores, o co-dependente vai duvidar e participar sem perceber, numa espécie de mecanismo que volte a pôr as vítimas no papel de vítima. Adictos precisam de co-dependentes como co-dependentes precisam de adictos. Andam juntos, "compreendem-se" embora andem às turras e numa arqui-relação de amor ódio. Defendem-se uns aos outros, atacam-se uns aos outros, faz tudo parte do mesmo "não saber viver junto sem pisar a risca do razoável".

 

O 9º passo pode ser um desafio bastante psicadélico, e revelar com clareza o nível caleidoscópico do caos que se instalou pelo caminho. Reparar erros do passado, pode ganhar contornos demasiado complexos para quem ainda está a tentar saír desse mesmo caos.

O caos interior teve sempre um palco exterior e vice-versa.

Decidir ser saudável e ter relações saudáveis, passa em grande medida por procurar outras pessoas. Diferentes. Tão diferentes que se possa ficar realmente surpreendido. Porque será tentador procurar mais do mesmo. Novas pessoas com as mesmas dinâmicas, é como procurar o próximo buraco onde cair.

A estranha reviravolta é como um denso nevoeiro. Chega a parecer que nunca vamos sair daquele labirinto de solidão e de uma confusão tão esmagadora.

E o que é mesmo estranho nisto tudo, é ser tão bom sinal.