Manipulação e a necessidade de uma nova auto-biografia
Os adictos não o são sozinhos. Nem o mais solitário dos adictos. Seja por aparente escolha própria, seja por opressão dentro do seio familiar e social, seja por abandono e negligência.
Os adictos são uma de muitas partes de um mecanismo mal calibrado, sabe-se lá desde que parte da história.
Um adicto não se torna adicto sózinho. Precisa de quem viva com ele toda uma história que culmine aí, nesse sintoma grave de desequilíbrio dentro do sistema no qual este está inserido. Tanto ao nível da família nuclear, como ao nível de uma cultura civilizacional à qual pertence.
Nenhuma vida começa no ponto de contacto directo com o objecto de adicção. É preciso uma história inteira de desequilíbrio para gerar um indivíduo com uma doença de tal forma abrangente, uma doença de vida. De vida partilhada.
As famílias, ou cuidadores desde os primeiros anos, são rápidas em atribuir culpas, normalmente. São totalmente cegas para dentro, normalmente.
A negação é um sintoma importante no diagnóstico das adicções. E as famílias estão em negação, por norma. Do facto de que a doença do adicto é de todos. É um desequilíbrio partilhado. É muito difícil cada um encontrar em si essa fronteira entre a saúde e a doença, a acção e a reacção.
Que fique assente que dizer que uma família é doente, e vive uma dinâmica de desequilíbio, não é um insulto, é uma esperança.
Não se trata de culpar. De responsabilizar, sequer. Nem existem maus e bons como nos filmes.
Na vida as coisas não são absolutas, elas relacionam-se umas com as outras e assistimos sempre ao resultado.
O adicto não é um absoluto, é uma relação.
Cada pessoa da família, há muito que deixou de ser um indivíduo estanque. O nível de contaminação é proporcional ao grau de complexidade dos problemas com que a família se depara.
Lidar com um adicto é extremamente traumatizante. Deixa marcas para a vida inteira. Em filhos de adictos, é ainda mais grave, na medida em que estas crianças começam a ficar embrulhadas no nó cego de uma vida familiar profundamente doente. Não há como esconder, fazer de conta. Uma criança pode não saber o que se passa. Mas sabe o que não tem. Porque uma família doente nunca vai proporcionar-lhe o mesmo do que um ou mais cuidadores em recuperação ou saudáveis.
Em qualquer idade lidar com um adicto deixa profundas marcas.
Ninguém pode alegar que ainda assim decide bem, pensa claramente, e vive de forma saudável, tranquila, "cuidando" ou não do adicto. Alegar que isto se passa chama-se negação. Não é humanamente possível ver um ser humano em derrocada e ficar em paz. Muito menos quando se trata de alguém de quem gostamos.
Infelizmente para o adicto, a probabilidade de alguém da família compreender tudo isto e enveredar por um caminho de recuperação em simultâneo, é muito pequena.
Em geral as relações continuam tensas, as culpas pairam, as antigas histórias contaminam o presente como uma mancha que resiste e não quer sair.
Em geral o adicto em recuperação, tem de o ser fora do seu contexto de origem. Não é na génese da adicção que o fim da adicção está.
Para entrar em recuperação é preciso, muitas vezes, encontrar um grupo de pessoas que constituam um novo núcleo edificante, forte, conhecedor de todo o processo e do tema das adicções. E esse grupo de pessoas irá mesmo assim ser, muitas vezes, pouco a comparar com a carga de consequências de entrar em recuperação dentro de uma família aparentemente saudável ou não.
O castelo de cartas começa todo a cair.
É preciso ser muito forte, quando força não é sempre uma realidade que se sinta.
Às vezes é preciso cortar relacionamento, às vezes o preço é surpreendentemente elevado.
100% das vezes é o caminho certo, porque nos leva na direcção certa: Da liberdade! Da paz! Da esperança! Da amizade sincera e saudável! De amores saudáveis e edificantes! De uma coisa que se possa chamar Vida.
O engodo de uma história familiar de sempre, vai ganhando novos aspectos. E um dia a história revela-se muito diferente.
Um adicto em recuperação, é outra história. Em construção de outra narrativa muito diferente. De uma nova auto-biografia que faça, finalmente, sentido.