Obstáculos à recuperação 5
Haverá vida depois da recuperação?
Se imaginarmos uma vida totalmente em torno de um centro, em que tudo gira em torno desse centro até a nossa identidade se confundir com essa bola de neve de complexidade, estaremos a descrever a vida de alguém que deixou de ter sequer a noção de que existe alguma coisa fora daquilo que vive.
Qual podería ser o objectivo de enfrentar a maior luta de uma vida, com profundo sofrimento, a ter de pôr em causa tudo e todos, a ter de ir ao quarto mais escuro, do medo mais esmagador, a ter de arrancar do peito a dor mais antiga e ninguém poder dizer se vamos ter sucesso, se vai ser rápido, e se; ainda por cima, não temos a certeza de que a vida depois da recuperação nos interessa???
Será mesmo que a dita "vida comum" interessa a um adicto? Será mesmo que o que ele mais quer ser é equilibrado??
Existe realmente equilíbrio na "vida comum"? Será, realmente interessante, a vida que as outras pessoas parecem almejar e viver?
Dificilmente.
Existe nas dependências um princípio de verdade que é o facto de estas responderem 100% das vezes a uma necessidade de sobrevivência perante perspectivas que não encontram eco no interior do adicto, de uma tremenda falta de reflexo entre o dentro e o fora, e um alicerce rombo, onde a "vida comum" criou mais mossa do que estrutura e força, quando a personalidade estava ainda em formação.
É difícil compreender fora da cabeça do adicto que a dita "vida normal" tem muito de alucinada e absurda. O facto de nos termos habituado a ela não significa que ela seja razoável e que seja aceitável tanto do que sucede de absurdo, doloroso e desnecessariamente maçerador aquilo que se vive. A "vida normal" das ditas pessoas "normais" é muitas vezes um percurso de adaptação ao inaceitável, que não é necessariamente grande demonstração de inteligência.
Perante o inaceitável talvez fosse mais lógico não aceitar. E no entanto, as circunstâncias da vida, os percursos, uma educação que nos prepara para a adaptação e não para a transformação, cria aceitantes, cooperantes com o inaceitável e para o dependente isso parece o inferno.
Além da terrível pergunta:
Serei eu capaz de viver uma vida "normal"?
...
É um obstácuo existencial, que abre uma proposta de análise social a todos nós, de um questionar que não devia ser encerrado com o carimbo "Bem vindo ao mundo dos crescidos! Cresce!" Porque se é certo que existe sempre uma forma de imaturidade no adicto: emocional, vivencial, espiritual... verdade é também que num ponto o adicto tem razão em dizer que há também muito a mudar no absurdo colectivo em que a banalidade aceita viver, sem questionar.
Ainda assim, que fique registado:
O inferno é antes da recuperação, a recuperação é um parto doloroso e, sim, existe vida depois da recuperação. Ninguém melhor do que quem fez esse caminho para o afirmar sem margem para dúvidas, para dizer que é possível, e como nada pode ser pior do que nadar num mar de medo, seja ele aplaudido ou estigmatizado, seja ele feito de pressões externas ou internas... Viver sem dependências é sempre, inequivocamente, muito melhor.