Controlo e repressão - a espada de dois gumes
Nunca vivemos a vida uns dos outros, não temos essa capacidade física nem psiquica. Não podemos substituir o outro no que sentimos que faríamos melhor.
Parece-nos sempre que na situação do outro podíamos conseguir outros resultados, mesmo se estivessemos nas mesmas circunstâncias. As famílias e amigos costumam saber exactamente no que era necessário ao adicto para "mudar de vida" e no entanto a história parece arrastar-se sem grandes mudanças nem de uns nem de outros.
Quando uma fórmula não funciona sería melhor mudar de fórmula, mas é mais comum que tudo se mantenha e vá agudizando, porque as dependências resultam de dinâmicas e não de um indivíduo apenas, embora se manifestem mais no adicto.
Muitas vezes, com o passar do tempo, vai aumentando o teor do controlo e da repressão que os que sentem que têm algum ascendente sobre o adicto exercem sobre este.
Trancar num quarto, trancar em casa sem telefone, vigiar pelas ruas, controlar entradas e saídas com ar de GNR, ouvir telefonemas, invadir a privacidade... tudo se justifica. Chamam-lhe "intervir", que na realidade se chama "participar". Participar do mesmo ciclo de desrespeito que tem dois resutados:
1) é inútil.
2) aumenta no adicto a falta de respeito por ele mesmo e por aqueles que o querem ajudar.
O caminho do amor e do desrespeito confundem-se. Amor e desrespeito não ligam. Desrespeito e recuperação não ligam.
Facto é que a família é por norma quem menos pode ajudar o adicto. Em grande medida porque estes enredos uma vez criados tendem a aumentar e a tornar-se bizarros.
Ninguém tem de viver com um adicto. Ninguém é obrigado a aturar o drama e a confusão da vida do adicto. Muitas vezes não aceitar a adicção em casa é a maior prova de respeito que se pode dar ao adicto. Na realidade a maior parte das famílias pensa que protege o adicto de si mesmo controlando-o. Não lhe viram as costas porque têm receio que morra, e no entanto a maior parte dos que morrem de overdose ou de misturas viviam na casa dos pais. Logo a estatística vem demonstrar que este receio é irracional embora compreensível.
Quanto mais cedo o adicto percebe que não tem co-dependentes para o apoiar na sua adicção mais depressa fica sozinho, mais rápido percebe que por aí não se safa.
Quanto mais rápido percebe que por aí não se safa, mais rápido percebe que tem de fazer alguma coisa.
Provavelmente vai tentar encontrar outro co-dependente que continue a permitir-lhe continuar na mesma vida. E por sorte não conseguirá.
As famílias juraríam a pés juntos que não colaboram com a adicção, pelo contrário, desdobram-se em esforços, terão uma lista de todas as tentativas e de toda a dor. E isso é obviamente respeitável e mesmo louvável, vem do amor que sentem e foi feito de coração. No entanto, as tentativas só o são pelo adicto. Só o adicto é que tenta. É a luta dele. Quando a família também tenta, então é porque se substituiu ao adicto e "tentou" controlá-lo e é por isso que não resulta.
Permitir e contribuir para a adicção é muito mais básico. O adicto precisa de muito pouco para continuar adicto. Precisa de ter onde dormir e o que comer. Mais nada. Precisa de ter com que comprar o objecto da sua adicção. E mais nada. Tudo o resto perdeu perspectiva, e está como que esfumado numa nuvem abstrata de emoções que deixou de conseguir digerir.
Se o adicto tem onde comer, onde dormir e com que comprar o seu objecto de adicção... para quê mudar? Ele não precisa de mais nada. Mentir, manipular, e fazer senti-lo culpado e envergonhado... isso é inútil, o adicto sabe tudo acerca dessas 4 coisas. Ninguém mente mais ou melhor, manipula com mais argúcia, nem ninguém se sente mais culpado e envergonhado que o adicto. Esses caminhos mais do que inúteis são contra-producentes.
Para perceber que tem de fazer alguma coisa o adicto precisa de perder realmente o chão, caír no abismo, compreender que tocou o fim desse caminho. Quanto mais cedo melhor.
Muitos morrem. É verdade. Muitos fogem. Muitos perdem-se. É verdade. Mas poucos são verdadeiramente respeitados e amados. Com verdade, com integridade, com coragem para bater a porta a tempo e horas. Poucos têm a sorte de conhecer a nobreza das suas famílias, a honra dos seus amigos. A maior parte vive num mundo de esquemas e trafulhices, manipulações, controlo e repressão.
Além disso convém saber. As adicções matam. Todas. Não é apenas o alcool e a droga. O trabalho em excesso mata. A obesidade mata. E a solidão então...!
É por isso que tantos adictos morrem. Porque têm uma doença grave, crónica, e que os ultrapassa, por ser uma doença de dinâmicas familiares a que pertenceram a vida toda.
E é por isso que as famílias que querem ajudar o adicto, precisam antes demais de começar a fazer terapia, a aprender, a compreender, a trabalhar em conjunto e quanto ao adicto... ele, e apenas ele, tem de tentar.
Mais ninguém pode fazê-lo.
E ele não o fará, se não precisar.